Por Ingrid de Araújo Gomes
Quando estudamos a história colonial do Brasil, as temáticas que costumam ser abordadas de imediato envolvem os processos de escravização, cristianização indígena e exploração das riquezas encontradas nessas terras. Porém, pouco ainda é questionado sobre o que as nossas cidades, principalmente as que se originam neste período e que depois de séculos ainda mantém suas características intactas, têm a nos dizer não só sobre a época em si, mas também, sobre como suas construções contribuíram para moldar as formas com que vivemos e nos relacionamos hoje.
Na tentativa de desenvolver um pouco essa ideia, utilizarei o exemplo da cidade de Porto seguro, que teve sua primeira vila – de mesmo nome – fundada no ano de 1535 e que mantém grande parte de suas estruturas coloniais vivas. Além de ser largamente conhecida como a região que marca a chegada dos Portugueses ao que hoje chamamos de Brasil.
O primeiro núcleo urbano de Porto Seguro foi fixado onde hoje se localiza a Cidade Alta. Essa escolha, para todos os efeitos, não foi feita por acaso. Geralmente as cidades de origem portuguesa carregavam a característica de se estabelecerem primeiramente em colinas ou em planícies acima do nível do mar, pois necessitavam de um local que garantisse o mínimo de segurança contra ataques por terra de grupos indígenas considerados “selvagens” ou pelo mar, por possíveis disputas de território realizadas por outras nações européias. Esse padrão correspondia, também, à aplicação de normas e códigos de fundação estabelecidos pela Coroa Portuguesa.
Esses núcleos urbanos, portanto, se estruturavam em dois níveis: um na parte alta onde se localizavam as principais funções religiosas e administrativas da cidade, e outro na parte baixa, na qual se localizavam as funções comerciais e portuárias (Teixeira, 2009, p. 03). Podemos visualizar essa estrutura na imagem abaixo, que demonstra a aparência da vila de Porto Seguro no final do século XVIII e início do século XIX:
Vista da vila de Porto Seguro, no rio Buranhém

Fonte: WIED MAXIMILIAN, Prinz Von, 1989, p. 217
Na parte elevada do morro, conseguimos identificar a Casa de São Salvador, antigo colégio dos jesuítas, localizada na entrada da Cidade Alta. Ao longo do sítio há outros edificios de natureza administrativa e religiosa. Já na parte baixa, observa-se um conjunto de construções que podem ser tanto de natureza comercial e portuária, quanto de moradia da população.
Outra característica importante das cidades de origem portuguesa é a relação do traçado urbano com as condições físicas do território, pois estas definiam as principais direções de crescimento urbano e influenciavam na localização em que os edifícios institucionais seriam implantados, além dos espaços urbanos formais que se associariam a esses edifícios. Essa tendência foi muito valorizada nos núcleos menores e mais antigos, cujos locais frequentemente se instalavam no topo das colinas e apresentavam acentuada irregularidade topográfica (Teixeira, 2012, p. 41).
A preocupação na regularidade e na ordenação geométrica dos centros urbanos brasileiros se tornou hábito somente no século XVIII, momento em que a Coroa Portuguesa assume uma responsabilidade maior no processo de urbanização, principalmente dos núcleos centrais de colonização. Podemos visualizar esse movimento na antiga Vila de Porto Seguro, em que houve a implantação de uma política urbanizadora realizada pelo ouvidor José Xavier Machado Monteiro no final desse mesmo século, viabilizando a abertura das vias principais, construção e reedificação dos edificios notáveis e um novo ordenamento da estrutura urbana. A imagem abaixo, retirada do catálogo do IPAC-BA de 1988, nos permite visualizar e analisar a estrutura das ruas que mantiveram ao passar do tempo, a lógica urbanística portuguesa.
Planta da cidade alta de Porto Seguro

Fonte: Catálogo IPAC-BA, 1988, p. 338, adaptado pela autora.
Nas povoações mais antigas, como é o caso de Porto Seguro, os arruamentos exerciam principalmente as funções de meios de ligação entre os edifícios notáveis e as praças, tornando-se as principais ruas das cidades (REIS FILHO, 1968, p. 130). De acordo com as cartas do ouvidor Machado Monteiro, encontradas no Arquivo Histórico Ultramarino, podemos supor que as primeiras ruas a serem abertas foram as que hoje são nomeadas de Rua Antônio Ricaldi e Rua Nossa Senhora dos Passos, identificadas na figura 2 com as cores laranja e roxo, as quais ligavam todos os edifícios notáveis e seguiam a topografia do morro até a cidade baixa. As outras três ruas seriam abertas posteriormente, nomeadas atualmente de Rua da Matriz, Rua São Braz e Rua São Sebastião, identificadas respectivamente nas cores verde, azul e vermelho, que seguiriam a lógica urbana fazendo ligação com os edifícios notáveis, se encontrando na praça principal.
Na planta, os edifícios estão identificados numericamente, onde o 1 representa o antigo Colégio dos Jesuítas, atualmente capela de São Benedito; o 2 representa a Igreja Matriz, atualmente Igreja de Nossa Senhora da Pena; o 3 representa a Capela Mór da Misericórdia, atual Igreja da Misericórdia e, por fim, o 4, que representa a Casa de Câmara e Cadeia, atualmente o Museu do Descobrimento.
É importante destacar que esses elementos foram estabelecidos a partir do processo de colonização não só com o objetivo de “facilitar” e organizar a vida institucional, mas também, de modificar e estabelecer novos comportamentos às sociedades indígenas. Os valores culturais e as tradições de um povo se manifestam também na forma que organizam seu espaço de convivência, e, a partir do momento em que há a fixação portuguesa e a política colonialista se consolida, os valores e a formação das cidades se modificam. O que era comum e orgânico, por exemplo, passa a se tornar individual e restrito.
Voltamos, portanto, à questão inicial: O que essas cidades e o processo de suas formações tem a nos dizer sobre a forma com que nos relacionamos não somente com o espaço, mas sobre a construção de nossos hábitos também?
Como podemos perceber na formação da vila de Porto Seguro, que serve de exemplo para as demais cidades e vilas coloniais brasileiras, a Igreja carrega um papel fundamental na organização urbana. Ela representa a influência exercida pelas relações de poder entre Estado e Religião, para o domínio não só do território, mas também dos corpos que ali se encontravam através da difusão cultural-ideológica e práticas de catequização. Foi determinado, por exemplo, uma “reforma dos costumes” nas populações indígenas coloniais que consistia em proibições de suas práticas culturais, entre elas, o impedimento de se falar línguas indígenas, o veto às habitações coletivas e a perseguição à nudez.
Foi prevista também a necessidade de se construir novos espaços de sociabilidades capazes de inibir a reprodução dos costumes classificados como “bárbaros” e de apresentar novos valores e hábitos ao futuros vassalos ameríndios. Dentre esses costumes, destacamos a frequente ida à missa, a celebração e culto de imagens e santos católicos e adoção às práticas sociais portuguesas, como o uso constante de vestimentas e moradias particulares, que abrangiam apenas indivíduos de uma mesma família, dentro dos moldes europeus (CANCELA, 2013, p. 51).
Essas e outras características permanecem solidificadas em nossas vidas até os dias atuais, tratadas como naturais à nossa existência, mas que foram impostas e colocadas acima de outras formas de organizações sociais, que apesar de constituir parte importante de nossa herança histórica, conhecemos pouco ou quase nada. As cidades coloniais trazem em sua essência, portanto, a forma com que essas relações foram construídas a partir de sua organização – ou como costumamos dizer, a partir de sua morfologia – e Porto Seguro é um bom exemplo de se visualizar isso. Uma vez que suas estruturas urbanas e localizações de seus edifícios permanecem originais desde o século XVIII, nos permitem questionar e aprender com mais facilidade o que a cidade tem para nos contar.
Vista aérea da cidade alta de Porto Seguro

Fonte: Conjunto Arquitetônico e paisagístico do município de Porto Seguro, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Autor: Jair Brandão, 1959. Retirada do site: acervodigital.iphan.gov.br em 31/07/2020.
REFERÊNCIAS
CANCELA, Francisco. De Projeto à Processo Colonial: índios, colonos e autoridades régias na colonização reformista da antiga capitania de Porto Seguro. Tese de doutorado, Programa de Pós Graduação em História da UFBA, 2012.
IPHAC-BA. Inventário de proteção do acervo cultural da Bahia. Monumentos e sítios do litoral sul, vol. 5. Salvador: Secretaria de Indústria, Comércio e Turismo, 1988.
REIS FILHO, Nestor Goulart. Contribuição ao Estudo da Evolução Urbana no Brasil (1500/1720). São Paulo, Editora EDUSP, 1968.
TEIXEIRA, Manuel C. O Patrimônio Urbano dos Países de Língua Portuguesa: raízes e manifestações de um patrimônio comum. Anais do III Simpósio Luso-Brasileiro de Cartografia Histórica, Ouro Preto, MG, 2009.
__________________. A forma da cidade de origem portuguesa. São Paulo, Editora UNESP, 2012.
WIED MAXIMILLIAN, Prinz Von. Viagem ao Brasil. Tradução de Edgar S. de Mendonça e Flávio P. de Figueiredo. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da USP, 1989.
→ SOBRE A AUTORA ←

INGRID DE ARAÚJO GOMES
Mestranda em História do Atlântico e da Diáspora Africana; licenciada em História pela UESC.